26.4.07

O dia do curinga


Lucilene Cobalchini

Em um baralho encontramos muitas cartas de paus e copas e outras tantas de ouros e espadas, mas apenas um curinga. O curinga é o único que se diferencia de todo o resto, não possui um naipe, nem um número e, na maior parte das vezes, é ignorado pelos jogadores, que não sabem muito bem para que serve ou o que devem fazer com ele.

Mas por que, então, existe o curinga? Essa é a pergunta que o escritor Jostein Gaarder, famoso pelo livro O Mundo de Sofia, propôs-se a responder em O Dia do Curinga, de 1995. Nada é tão misterioso quanto a vida e, de todos que nascem e morrem, apenas alguns estão conscientes de que não é nada óbvio viver. O livro de Gaarder, mesmo após mais de dez anos de lançamento e já em sua 23ª edição no Brasil, continua atualizado e mostrando como assuntos sérios e existencialistas podem ser tratados de forma lúdica, como que em um conto de fadas moderno.

O garoto Hans-Thomas, de doze anos, parte de sua terra natal, a pequena cidade de Arendal, na Noruega, para a Grécia. Na terra dos filósofos, ele e seu pai esperam encontrar Anita, a mãe que o abandonou oito anos antes para partir “em busca de si mesma”. O pai de Hans, um ex-marinheiro ansioso para ver o mar da Grécia novamente, também é filósofo amador e possui a estranha mania de colecionar curingas de baralhos. Durante a viagem, ele procura introduzir seu filho na incrível ciência de conhecer a si mesmo através da filosofia e, mesmo sem saber, é ajudado em sua tarefa por um livrinho, minúsculo e misterioso, encontrado por Hans-Thomas. O livrinho leva o menino para uma viagem paralela, onde cartas de baralho ganham vida em uma ilha mágica e mostram muito dos mistérios da existência e do mundo.

Partindo do pressuposto de que somos como as cartas de um baralho, pertencemos a um grupo delimitado, atendemos a certos estereótipos para não sermos ignorados dentro da sociedade, o autor mostra, por meio de analogias com o personagem do Curinga, como o conhecimento é importante para alcançarmos a singularidade, ou seja, o conhecimento de si mesmo. O livro é uma pequena introdução à filosofia, com um estilo literário leve e divertido, interessante tanto para jovens como para adultos.

O Dia do Curinga é dividido em 53 capítulos, um para cada carta do baralho, incluindo o Curinga. A narrativa em primeira pessoa, feita por Hans-Thomas já em idade adulta, alterna com a narrativa do livrinho misterioso encontrado por ele, traçando incríveis paralelos entre as duas e misturando realidade e ficção. Lembra, por vezes, Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, por seus mundos paralelos e charadas existenciais. Desprender-se do cárcere da consciência e ultrapassar os limites que o mundo nos impõe, palpar o impalpável, a descoberta do que é criatura e do que é criador são apenas algumas das questões levantadas pelo livro ao longo de suas 378 páginas.

“Apenas o Curinga do jogo não se deixa iludir”, diz o autor. Curingas são raros em qualquer baralho, mas sempre existe um para manter viva a esperança e procurar a verdade dentro de si mesmo. O Dia do Curinga (Companhia das Letras, tradução de João Azenha Jr., R$ 35,00) é muito mais que um livrinho para folhear e passar bons momentos em uma tarde monótona ou para fazer o tempo passar mais rápido em uma longa viagem, e, muito menos, um livro infantil (como é classificado nas livrarias). Ele é uma busca incessante por perguntas e respostas, sobre a existência e sobre si mesmo, antes de tudo.

Azaração neurótica na MTV


Joseane Demeneghi

A fórmula é recorrente: homens e mulheres se enfrentam em uma gincana de provas de naturezas diversas. A peculiaridade do Neura MTV, no ar desde o ano passado, é utilizar a própria diferença entre os sexos como o assunto central do programa. Ponto que poderia contar a favor, não fosse pelo apelo adquirido nas últimas edições.

Neura MTV surgiu como uma alternativa para aliar jogo e informação, o que já ocorreu em programas anteriores da emissora, como Quiz MTV e Neurônio. Porém, recheado de perguntas que testam o conhecimento dos participantes acerca dos universos feminino e masculino, ora o programa traz de fato alguma informação relevante, como dados de pesquisas ou científicos, ora se verifica uma espécie de guerra de sexos, com certos preconceitos sobre “coisas-de-menino” e “coisas-de-menina”. Um exemplo são as esquetes que satirizam o relacionamento de um casal, interpretadas pelos próprios apresentadores, Cazé e Marina Person. Antes parasse por aí.

Na versão de 2007, que estreou há poucas semanas, o programa veio com provas reformuladas – e mais apimentadas. Em uma delas, alguém da platéia "paga o pato" pelas respostas erradas dos participantes. Quanto mais a equipe erra as respostas, mais o representante do grupo oposto se aproxima dele e, ao final, dá-lhe um beijo. É só um selinho, então tudo bem. Em outra, os meninos devem apontar as partes mais e menos atraentes das adversárias e vice-versa. Ainda sobra tempo para provas em que se tira uma peça de roupa ou em que as equipes trocam de roupa entre si em espaços apertados. Sem contar que a prova de marcar um encontro por telefone com alguém do sexo oposto sugerido pela outra equipe, já existente no ano anterior, continua. Tudo com a maior naturalidade, claro, pois tudo isso "faz parte" do universo jovem.

É importante levar em conta que outros programas da emissora trazem essa tendência atual do "ficar" e do namoro na TV. O já manjado Beija Sapo, apresentado por Daniela Cicareli, parece manter o fôlego; A Fila Anda, com Penélope Nova, ganhou versão definitiva; e os norte-americanos The Room Raiders, My Own e Do You Wanna Come In? são presenças constantes na programação. Alguns mais outros menos, eles sempre trazem um apelo pela conquista, pela confrontação de personalidades e de padrões e pelo sonho de um par perfeito – pelo menos por um único encontro ou para um único beijo.

Tanto programa de "xaveco" no ar dá a impressão de que nada muito diferente disso interessa aos jovens que assistem ao canal. Não é à toa que outras emissoras voltaram a apostar na idéia pegando o embalo da MTV, como o Namoro na TV, do SBT, e o Jogo do Namoro, da Rede Record. Mais lamentável que essa disseminação por todos os canais, é a contaminação dos programas da própria MTV, em que um programa como o Neura, que poderia ser bem mais educativo, também passou a apelar para a "azaração" entre os jovens.

Kafka fotografa


Felipe S. Franke

“Você é muito saudável, não vai entender isto.” Assim escreveu Kafka ao enviar a sua irmã um manuscrito de Um médico rural, conjunto de contos escritos entre 1916 e 1919. Publicado postumamente, o livro (Companhia das Letras, tradução de Modesto Carone), a julgar pelo seu tamanho, é modesto: são quatorze estórias condensadas em pouco mais de 80 páginas. No conjunto, entretanto, estes pequenos relatos revelam um novo e ainda mais instigante lado do escritor tcheco, freqüentemente elencado entre os principais do século XX.

Franz Kafka (1883-1924), tcheco de nascimento e alemão na linguagem, costuma ser famoso por seus romances, como O processo, O castelo, ou, sobretudo, a novela A metamorfose. Nessas obras, conta histórias frenéticas e agoniantes de personagens presos em problemas que não conseguem compreender ou que, quando o conseguem, são de difícil explicação e exteriorização. São histórias que detalham, em enorme habilidade narrativa, trajetórias de indivíduos imersos no mundo moderno. Na busca da sua interpretação, estudiosos delineiam a reificação da vida, o assujeitamento e a burocracia como alguns dos motes centrais da inspiração estética kafkaniana.

Um médico rural, por sua vez, revela outra frente criativa do tcheco. A diversidade marca a obra: há contos relâmpago (como A próxima aldeia, de um parágrafo apenas) e pequenos narrativas (Um relatório para a academia, 11 páginas). Há contos ao romanesco estilo kafkaniano, como a aventura noturna de um médico rural no atendimento a um enfermo (a qual dá título ao volume), bem como o obscuro A preocupação do pai de família, que apresenta em duas páginas a reflexão sobre Odradrek, aparentemente um ser mecânico. Quanto a narradores, há os tradicionais, como o médico supracitado, bem como contabilistas, cuja atitude é uma grande enumeração de itens e pessoas (como em Uma visita à mina).

Nessa variabilidade, porém, há unidade: o estilo atemporal e quase fotográfico que Kafka assume. Diferentemente da narração minuciosa e nauseante dos seus romances, que imprime uma sensação de movimento (mesmo que este se mostre inútil), Um médico rural aproxima-se de um plácido álbum de fotografias, onde Kafka exibe percepções congeladas do mundo. São narrativas instantâneas, que paralisam espaço, ação e tempo, pintando os componentes de cada cena, seja ela uma matança no meio do deserto, uma apresentação circense ou a estada de um imperador na cidade. Em alguns contos, sejamos justos, há estória, isto é, acontecimentos que se sucedem; mas o que fica, ao cabo destes, é o sentimento fotográfico, da cena descrita naquilo que, afora a movimentação e correria, tem a oferecer.

Kafka, ao que se sabe, não foi grande viajante; viveu ancorado a Praga. Sua casa, contam os que por lá passam, surpreende pelo aperto quase desumano. Mas a sensação de prisão, sem dúvida uma das marcas do seu legado literário, é posta em xeque em Um médico rural, pois, em termos de variedade de espaço e de localização, o livro esbanja liberdade em comparação aos romances. Mas é o narrador de Um médico rural mais livre? As despretensiosas fotografias libertam o personagem? A resposta à obra, afora simples considerações sobre os contos, só pode ser proposta pela divagação feita do próprio leitor – e isso depende, conforme já alertado por Kafka, da saúde espiritual de cada um.

8.4.07

Guerra crua e sem dublagem


Luís Felipe dos Santos

A Academia, organização responsável pelo Oscar em todos os anos, não gosta de legendas. Todos os filmes que obrigam o espectador norte-americano a ler e acompanhar as imagens são mal-vistos. Este é um dos motivos plausíveis para o descaso com o filme "Cartas de Iwo Jima" na lista dos premiados do Oscar 2007, ocorrido em março, uma vez que o principal prêmio do cinema mundial destinou à película apenas duas estatuetas, em categorias técnicas. O filme é de Clint Eastwood, a produtora é a Warner Bros., mas o filme é falado em japonês, pois o diretor preferiu a opção artisticamente correta em se tratando de uma película surpreendente humana.

O humanismo presente na história não é surpresa quando vemos que Eastwood também dirigiu "Menina de Ouro" e "Sobre Meninos e Lobos", muito ricos na construção de personagens imperfeitos. A produção de Steven Spielberg dá suporte para Eastwood seguir nessa linha, evitando os eternos clichês de filmes de guerra. "Cartas de Iwo Jima" faz parte de um ousado projeto de Eastwood, retratando duas versões diferentes para um episódio da Segunda Guerra Mundial. O outro filme, "A Conquista da Honra", mostra a versão dos soldados americanos na invasão da ilha japonesa. "Cartas..." é uma história focada nos dias que antecedem a invasão americana na visão dos combatentes japoneses.

A história é centrada em duas personagens, o soldado raso Saigo (Kazunari Ninomiya), um jovem padeiro forçado a abandonar a mulher grávida para servir nas forças imperiais, e o Barão Nishi, interpretado pelo astro nipônico Ken Watanabe (O Último Samurai). Nishi é um campeão olímpico de equitação que ocupa alto posto na hierarquia militar japonesa, tendo sido escalado para lutar em Iwo Jima graças ao conhecimento que tem dos americanos – viveu alguns anos nos Estados Unidos. O recurso dos flashbacks é utilizado para contar a história de vida destas personagens, demonstrando para o espectador a diversidade de experiências dos combatentes da ilha.

Paralela às pequenas biografias, a batalha é contada com a crueza necessária para um filme de guerra. A violência é pura, simples e realista, sem apelações com o objetivo de enojar ou chocar o espectador. A violência é um elemento que faz parte do contexto da batalha, não é um fim em si mesma, ao contrário dos títulos que batem recordes nas bilheterias americanas – tais quais "Apocalypto" e "O Albergue". A descrição minuciosa das impressões e experiências das personagens é cativante, pois não é difícil se identificar com as figuras dramáticas em cena. A intenção é de questionar: o que você faria no lugar de Saigo, vendo o seu batalhão pensar em suicídio por conta de um fracasso iminente?

O filme foi muito bem aceito no Japão, liderando as bilheterias do país. Muito deste sucesso se deve ao extremo respeito com o qual Eastwood tratou a cultura japonesa, mesmo em situações de absoluta anormalidade para os nossos olhos ocidentais. A fotografia, saturada e com cores uniformes, retrata a tristeza de um ambiente onde a morte é figura constante.

Em "Cartas de Iwo Jima", Clint Eastwood consegue representar com alta qualidade a convivência das batalhas individuais no contexto da batalha entre exércitos. Em dado momento, as personagens parecem continuar a lutar por motivos próprios, desvinculados do motivo causador da guerra. "Na realidade nunca há vencedores. É sempre a mesma coisa, o 'sacrifício da juventude', toda essas pessoas mortas na flor da idade", disse Eastwood em entrevista coletiva.

Também não há vencedores no Oscar, quando o prêmio deixa de ir para obras densas e reflexivas.

O fantástico com os pés no chão


Gustavo Coltri Skrotzky

Não se engane pela primeira impressão. "Ponte para Terabítia" (2007) não é uma das tradicionais produções da Disney, quase sempre carregadas de uma ingenuidade constrangedoramente artificial, mas uma história de fantasia dramática, o que dificulta sua classificação como um filme essencialmente infantil. Trata-se de uma obra sobre a passagem pela infância, retratada em boa parte de suas nuances, das brigas entre irmãos às paixões platônicas pela professora.

O longa chega aos cinemas trinta anos depois da cultuada publicação do livro homônimo de Katherine Paterson. A adaptação para o cinema aconteceu por intermédio do filho caçula da autora, David, a quem o texto original foi dedicado como consolo às dores geradas pela perda de uma grande amiga.

"Ponte para Terabítia" revela a história de um tristonho e introspectivo menino chamado Jess (convincente interpretação de Josh Hutcherson), um promissor desenhista que tenta subjugar o desprezo dos colegas de escola por meio de vitórias nas corridas das aulas de educação física. As aspirações do garoto interiorano acabam frustradas depois da chegada da imaginativa e veloz Lesley à cidade (Anna Sophia Robb), que o supera na mais recente prova de atletismo. A antipatia inicial pela menina, que mora na casa ao lado, é compartilhada pelos outros estudantes, não muito acostumados ao estilo moderno de gente de cidade grande.

Em pouco tempo, entretanto, a repulsa das outras crianças por ambos acaba por uni-los numa grande amizade, resguardada na criação de uma terra imaginária situada na floresta próxima à casa dos dois. Lá eles transformam-se em reis, prontos para lutar com criaturas horrendas pela libertação do território, sob o domínio do mal. Na vida cotidiana, Jess usa a inspiração do mundo fantástico, batizado de Terabítia, para enfrentar as dificuldades de uma infância sem luxos, de um pai pouco amoroso e de perseguições na escola.

Curiosamente, o principal defeito do filme é a forma com que ele se apresenta ao público, com uma campanha publicitária forçadamente apoiada no blockbuster "As Crônicas de Nárnia", de 2005. Ainda que o livro de Paterson tenha declarada inspiração no best-seller de C.S. Lewis, os pontos em comum entre a obras cinematográficas são bem menores do que um olhar apressado pode sugerir. E, ao contrário do que o trailer leva a crer, alardeando produtores e estúdios comuns entre os longas, esse não é um subproduto das aventuras dos irmãos Pevensie. É, na verdade, um singelo relato de como a imaginação pode ser fonte de vigor para os enfrentamentos dos problemas da infância.

"Ponte para Terabítia" é o primeiro e acertado filme live-action do húngaro Gabor Csupo, que já demonstrou talento como criador do desenho animado "Rugrats”, mostrando o ponto de vista de bebês sobre acontecimentos cotidianos.

A fotografia esmaecida e os poucos efeitos especiais fogem ao estilo normalmente empregado em produções desse tipo, que primam pela riqueza visual. A opção, ainda que arriscada pelo menor apelo estético junto às crianças, é apropriada, acentuando uma dualidade entre a crueza do mundo real e a magia da atividade imaginativa. A trilha sonora também atenua pieguices e confere maior atualidade à história, intercalando músicas orquestradas e canções populares.

Trata-se, enfim, de uma obra que retrata os desafios de crescer, um filme que revela a forma com que os pequenos, de olhos fechados e mentes abertas, superam os eventuais contratempos e tristezas da vida. Com toda a inocência, claro.

6.4.07

Síndrome do pânico porto-alegrense


Flávio Aguilar

Cheguei em casa cansado, muito cansado. Dia cheio. Sensação de ter esquecido algo no serviço, um pulmão talvez. Água no rosto, esfrega, esfrega, água gelada, quase acabando, mão no pescoço... opa. Sinto, com estranheza, a forte saliência atrás da minha orelha; aliso assustado, a imensa bola firme que se precipita na minha cabeça.

O medo da morte não me aparece em qualquer momento do dia. A síndrome do pânico é exercício pontual no elevador que se aproxima do vigésimo andar, no ônibus que desce inconseqüente o viaduto da Conceição, no sujeito mal-encarado que caminha ao meu encontro na Gel. Vitorino, meia-noite e meia, centro repentinamente deserto. Quem mora, trabalha ou estuda no centro de Porto Alegre está acostumado com o estado de alerta, com a sensação de torpor nesse formigueiro humano. Eu, que trabalho, estudo e moro no centro, já nem sinto mais. Sou uma formiga. A vida não parece tão humana assim como uma doença dolorosa, um caroço na cabeça. Passar a mão ali, agora, é perceber de repente que estou vivo, e a morte talvez não seja tão banal quanto um atropelamento de ônibus.

Nessas horas, sempre se pensa no pior. É um tumor. É um câncer. Eu no caixão. Sobe aquela água nos olhos e dá um tremelico. E se for? A minha mente é perversa demais, fantasia tudo. De repente vem a imagem de todo o meu pequeno futuro de sofrimento e angústia. E sinto todo o sofrimento e angústia do meu pequeno futuro, tudo junto, agora, sentado no fundo do ônibus Santana, em direção ao HPS. Todas as outras pessoas que ali estão não existem nesse inacabável instante.

Acho que nunca havia ido ao HPS sozinho. Nem sabia como agir, com quem falar, o que fazer. Passada toda a burocracia, entendi o que era aquilo tudo da TV; eu, uma hora na fila esperando atendimento. Na mesma sala de espera, gente quase desmaiada, outros chorando o familiar que agonizava na sala de emergência. Entram e saem médicos empurrando agilmente cadeiras de rodas e camas, nem olham para mim. Comecei a sentir um novo medo, um dos piores medos, o medo de estar passando por idiota.

Esses medos da pamonhice são, invariavelmente, os que se confirmam mais lúcidos. Apenas um cisto sebáceo na região retroauricular, em processo de infecção. Não morrerei disso ainda este mês. Um pequeno processo cirúrgico. Eu tenho medo de cirurgia. Minha pequena síndrome do pânico ataca outra vez. Ainda espero o acaso da morte inumana e com sua fraca possibilidade me conforto. Até esmagarem o formigueiro.

5.4.07

Mais interessante que a realidade


Julia Dantas

Alguns teóricos da literatura dizem que a ficção tem obrigação de ser mais verossímil que a realidade. A vida real é repleta de fatos aleatórios e sem significado maior, enquanto uma narrativa fictícia, dizem, deve manter a coerência dentro de seu próprio universo para ganhar a credibilidade do leitor-espectador. Mas, se tem a obrigação de ser verossímil, a ficção pode se dar ao luxo de ser impossível. É desta premissa que faz uso o filme "Mais Estranho que a Ficção", de Marc Forster, ao contar a história de um homem que subitamente ouve sua vida ser narrada por uma voz feminina dentro de sua própria cabeça.

Harold Crick (Will Ferrell) é um homem para quem “metódico” seria um adjetivo brando. Obcecado por números, o auditor da Receita Federal conta as escovadas em cada dente, os passos até a parada de ônibus, os minutos do almoço. Acontece que em um dia qualquer se dá o impossível ponto de partida da história. Harold Crick começa a ouvir a voz da escritora Karen Eiffel (Emma Thompson) enquanto ela escreve um livro sobre... Harold Crick.

Nosso herói, pacato e assustado como um anti-herói, começa uma busca desesperada por Karen após ouvi-la dizer que a história o encaminhava para sua morte iminente. Na procura por sua autora, o personagem encontra o professor de literatura Jules Hilbert (Dustin Hoffman), um sujeito com a encantadora capacidade de tratar realidade e ficção com a mesma seriedade – ou leviandade.

É da interação entre Crick e Hilbert, e dos arroubos excêntricos de Karen, que surgem as melhores cenas do filme, bem como as passagens que o elevam ao patamar de comédia engraçada (expressão que na história do cinema, infelizmente, não é um pleonasmo). O professor reluta em acreditar que Crick não passa de um esquizofrênico, e as ações de Crick são narradas por uma Karen sociopata, fumante inveterada e sarcástica até o osso. Para enfrentar o bloqueio criativo que a impede de pensar em uma forma de matar Harold Crick, a editora de Karen contrata a assistente Penny (Queen Latifah) que, a bem da verdade, só está no filme para ser alvo do humor ácido de Karen. Um motivo nobre, diga-se.

Apesar destas relações bem-sucedidas, falta química entre Crick e seu par romântico, Ana Pascal (Maggie Gyllenhaal), uma padeira que deve impostos ao governo. O namoro não convence. A sensualidade e energia dela, ao lado da morosidade e mediocridade dele, é uma junção inexplicável, e é aqui que o roteiro de Zach Helm peca: ao admitir o inverossímil dentro do impossível. A falta de faíscas entre o casal, porém, não chega a comprometer o filme.

O final da história pode não agradar a todos. O desfecho escapa da lógica da ficção para entrar em um plano mais ou menos possível, mais ou menos verossímil e mais ou menos interessante. Como o próprio professor Hilbert comenta a respeito da versão final do livro de Karen:

- É bom.

- Não é ótimo? – pergunta a escritora.

- Não. É bom.

Blogueiros a jato


Guilherme Machiavelli

Abri meu agregador de notícias no trabalho, esses dias. Como sempre acontece quando eu faço isso, fiquei mais ou menos uma hora só lendo as notícias, especialmente as de webdesign e relacionadas à informática: já que estou no trabalho, pelo menos que eu leia algo relacionado a ele, é o que eu penso. Mas, nesse dia específico, uma notícia me chamou a atenção especificamente. Era do site Mashable!, especializado em acompanhar as últimas modinhas do mundo online.

A notícia fazia um rápido resumo da evolução dos blogs (com gatos): começamos em 1999, com os primeiros blogs, em que as pessoas discorriam sobre seu dia-a-dia (vou escrever sobre o meu gato...); um bom tempo depois, veio o flickr, que se concentra na exibição de fotos (fotos do meu gato brincando); em 2005, surge o youtube, a grande febre da internet (vídeos do meu gato brincando). E eis que chegamos em 2007 e é criado o Twitter, a promessa de nova febre no mundo dos blogs ("1p.m. meu gato olha pela janela"; "1:02p.m. meu gato caça uma mariposa"; "1.04p.pm. meu gato come a mariposa. nojo.").

O Twitter é basicamente feito para a postagem de uma ou duas frases, seguindo o slogan da empresa: "What Are You Doing?". Entro neste exato momento e leio que damson está no pub. Xxdesmus está "no trabalho, tentando fingir que está trabalhando". E por aí vai: alguém reclama da tempestade que está caindo, outra pessoa conta que teve um pesadelo extremamente nerd.

O que me pareceu realmente muito interessante nos posts era como se assemelhavam ao texto de propagandas: falar algo muito brevemente e ainda deixando de alguma forma atrativos eventos corriqueiros. Uma sensação de que o usuário quer me convencer que sua vida é legal. Ao mesmo tempo que me parece um exercício de concisão, fico um um pouco preocupado pensando no que isso está dizendo sobre nós mesmos. Os blogs evoluíram de pedaços de texto relativamente grandes para uma frase minúscula imitando anúncios. Será que somos simplesmente engolidos por tanta informação que aquilo que nos acontece e nos motiva a escrever não merece atenção maior do que uma frase? Ou será que estamos tentando nos mostrar para o mundo da mesma forma atrativa que um anúncio? Será que nós mesmos estamos diminuindo como seres humanos com o tempo?

Pensamentos apocalípticos de lado, estou curioso para fazer um perfil e começar a postar trivialidades a jato, como um bom tecnófilo assumido. Afinal, foi impossível não me identificar com xxdesmus: comecei a pensar nisso tudo justamente quando estava matando tempo no trabalho.

Sobre as palavras e os sons


Cristiana Simon

Gosto de português. Talvez por ter tido a sorte de aprender com bons professores desde as séries iniciais, talvez porque minha mãe sempre incentivou a leitura. A justificativa não importa. O que importa é que tenho gosto pelas palavras, e por isso não foi nenhuma novidade para meus pais quando decidi cursar algo na área da comunicação.

E o gosto pelas palavras vai além da vontade de construir frases. O interessante é desenhá-las. Acho algumas palavras realmente bonitas, gostosas de falar. Algumas carregam um sentido certeiro e representam tão bem a coisa a que dão nome, que formam uma dupla perfeita. “Camomila”, por exemplo. Parece nome, comentei com um amigo outro dia. É delicado e prazeroso de dizer. Os lábios se juntam duas vezes para pronunciá-la. Por isso o nome “Camila” é delicado. Lembra camomila. E a flor de camomila é delicada.

Achei mágico quando, no filme “A Máquina”, de João Falcão, o personagem interpretado por Paulo Autran conta como surgiram as palavras. Ele inverte a ordem natural do pensamento. Diz que, antes de tudo, Deus criou as letras, depois as palavras. Mas achou que ainda não era o bastante. Então pensou e chegou à conclusão de que as palavras deveriam ter significados. Eram bonitas, mas não estavam completas. Elas deveriam definir algo. Então, para cada uma das palavras, Ele foi criando um objeto ou algo a que elas dariam nome, e assim surgiu a comunicação verbal.

Vício é uma palavra bonita também. Não levo em conta o significado dela. Considero a facilidade de falar, o som aberto dos “is” e a força do “c”. “Octopus”, embora não seja da língua portuguesa, é uma palavra confortável. Parece que a gente enche a boca para falar e deixa o som macio. Morango, almofada, maionese, pão, zíper. Uma observação, por sinal: a maioria das palavras gostosas de falar tem a letra “m” no meio. Lembrei-me agora de que a Macabéa de Clarice Lispector adorava soletrar a palavra datilógrafa. Da-ti-ló-gra-fa.

Falando em palavras feias, posso citar caminhão, caneta (tem sons monótonos), rua. Asa, então, nem se fala, acho horrível. Remete a frieza e falta de conteúdo. Não me pergunte por quê. É a sensação que eu tenho.

Acho que minha atração pelo movimento concretista deve estar aí. Os poetas viam um desenho. Preocupavam-se com forma e conteúdo, com a sonoridade dos textos. A construção deveria cativar também e prender a atenção. Escrever poemas era uma forma de montar formas e dar identidade visual àquilo que as pessoas liam. E eu prefiro ver um texto como um desenho bem torneado a vê-lo como um saco de palavras jogadas.

2.4.07

Quando eu soube que Papai Noel existe


Maria Rita Berta Horn

Foi no Natal de 85, quando tinha cinco anos, a primeira e única vez que o Papai Noel apareceu na minha casa. Até aquele ano, na hora que era para ele aparecer, eu sempre dava o azar de estar fazendo outra coisa no exato momento de sua chegada.

Em 83, minha mãe mandou que eu fosse aguardar pela janela da entrada de casa. Enquanto eu fiquei lá, esperando ansiosamente, o barba branca veio pelo quintal e, como estava com pressa, relatou minha mãe, deixou os presentes e foi embora.

Em 84, fiquei do lado da árvore de Natal, resignada: “Hoje eu falo com ele”. O sono me venceu e, num rápido fechar de olhos, lá estava o ursinho e o fogãozinho que eu tinha pedido. “Ô, filha, que pena, bem na hora que tu pegou no sono, né?”. Azar, o jeito era esperar mais um ano.

A minha casa era grande, mas naquele ano eu ia conseguir. Pedi a ajuda de um dos meus irmãos. Eu cuidaria a sala e ele, maior e um pouco mais ágil, vigiaria os outros lugares. Mas o famoso bom velhinho foi bem formal desta vez. Tocou a campainha e entrou pela porta da frente. Não lembro quem o recebeu, só lembro de ter ficado quase paralisada, estupefata. Ele estava ali, na minha casa, e, dessa vez, eu consegui vê-lo!

Fomos todos para a sala e, quando ele veio conversar comigo, percebi um rosto familiar. “Com quem parece? Com quem parece?”, repetia a pergunta para mim mesma. Os presentes foram distribuídos, mas não sem antes eu receber algumas recomendações do Papai Noel: “Tem que obedecer aos pais, comportar-se no colégio e ser educada com os amigos dos teus irmãos, como o Sérgio”.

Por que ele disse aquilo? Claro, aí a semelhança com alguém fez algum sentido! O Papai Noel era o Sérgio, amigo de infância dos meus irmãos mais velhos. Não fiz nenhum comentário, continuei ouvindo o recado e recebi meus presentes. Quando ele foi embora, fiquei pensativa, absorvendo minha descoberta.

Hoje, o que me faz sorrir quando lembro daquela noite é a saudade daquela inocência, daquela tendência que as crianças têm em manter vivas suas ilusões e que a gente vai perdendo quando cresce. Sim, porque a conclusão que tive naquela noite não foi de que Papai Noel fosse uma farsa, mas que ele realmente existia — e, mais fantástico ainda, era amigo dos meus irmãos.